domingo, 22 de março de 2009

Assisti a "Desejo e reparação". Confesso que há algum tempo um filme não me arrebatava como este. O roteiro é simples, mas dirigido primorosamente. O diretor Joe Wright fez uso de recursos arriscados, como câmera lenta, flashbacks curtos, cenas imaginadas pelos personagens, ângulos inusitados, câmera curiosa e inquieta... mas tudo na medida, sem prejudicar a sequência dos fatos que se desenrolam. Depois de "Orgulho e preconceito", também protagonizado por Keira Knightley, atriz e diretor, juntos mais uma vez, superam-se em talento e maturidade.

O longa, lançado em 2007 e Oscar de melhor trilha sonora, é mais um olhar sobre o amor na Segunda Guerra Mundial. Nesse, porém, a guerra limita-se mesmo a pano de fundo para dar lugar a uma história marcada pela força do amor, as consequências da mentira e o peso do arrependimento.

A ótima edição me fez lembrar outros bons resultados alcançados por filmes de Pedro Almodovar e Martin Scorsese.
Belíssima fotografia e figurino. Recomendo aos amantes do drama.




Meu olhar do jardim de casa.

Coisa de brasileiro

Brasileiro adora acordar tarde. Detesta a segunda-feira, enaltece a sexta. Brasileiro tem o hábito de começar o ano somente depois do Carnaval. Tudo fica para depois do Carnaval: os problemas, as promessas, as doenças, as obrigações e o mau-humor. No ritmo do axé, ele dança dizendo: “Depois do Carnaval, eu conto tudo a ela”; ou “Eu juro que começo o regime quando o Carnaval terminar”; ou ainda “A primeira coisa que vou fazer, assim que acabar a folia, é pagar as contas”. O pior desse hábito incomensurável é que a pátria Brasil, essa mãe gentil de coração mole, aceita tudo na maior santa paz. Não tem jeito mesmo, é coisa de família com tradição cristã. É coisa que não se evita.

Brasileiro tem hábito de sorrir, principalmente para os gringos. Aparece um sujeito enrolando a língua, e lá está o brasileiro de sorriso largo admirado com aquela fala engraçada e aquele rosto vermelho que nem molho de moqueca capixaba. Isso também é relíquia de família. Lembra dos índios e suas festas para receber os seres de além-mar? É coisa que não tem jeito.

Brasileiro come e bebe bem. De polenta a vatapá; de café preto a suco de açaí. Essa terra dá de tudo um pouco. E já que brasileiro também é criativo, esse tudo acaba inevitavelmente indo para a panela. Um pouquinho de cultura italiana daqui, uma pitadinha de africana dali, mexe e mexe à moda alemã, sem perder de vista a disciplina oriental, e temos um prato legitimamente brasileiro. É coisa de sangue na veia.

Brasileiro não gosta de fila. Infelizmente tudo acaba nela, mas ele sempre dá um jeitinho. Aliás, convenhamos, o tal do jeitinho virou o cúmulo da cara-de-pau. Roga-se um jeitinho ao guarda de trânsito, ao professor, ao caixa do banco, ao promotor, ao dono do carrinho de sorvete. É por isso que brasileiro sempre vê uma luz no fim do túnel. Essa índole otimista do povo provém justamente do fato de que todos acabam se rendendo ao jeitinho, já que com esse nomezinho no diminutivo, brasileirinho nenhum resiste. É coisa que devagarzinho irrita.

Brasileiro joga lixo no chão, cospe no chão, dorme no chão. Enquanto uns só conseguem ser higiênicos dentro da própria casa, outros, sem nada, fazem da rua o seu lar, da calçada cuspida e suja sua cama de cada noite. É coisa de perder a boa. Mas brasileiro tem esperança. Eta povo de coração quente! Povo que só perde o humor no trânsito engarrafado ou quando sente fome, seja ela de justiça ou de feijão.

O humor pode até se esvair, porém, a vontade de melhorar, nunca. Essa terra é tropical demais para desbotar ante as dificuldades. Muita coisa tem de mudar, claro. E agora, que já se foi o Carnaval, é hora, portanto, de começar a transformar o país. Coisa de brasileiro.

Mulheres made in China

Chegou a “vez do tum-tum”. Eu ia dizer a “era do tum-tum”. Mas, “era” é uma palavra muito sólida, que remete a ideias e tendências que se sustentam por décadas. Não é o caso da nossa era, que reinventa moda toda hora. E a moda da vez é a do “tum-tum”.

Está curioso? Pois bem, o “tum-tum” é uma onomatopeia que tenta imitar o som produzido pelas mulheres ao mover as partes, antes naturalmente frouxas, de seu corpo, como o bumbum e a barriga. Traduzindo para a linguagem popular: o que antes era macio e soava “pluf-pluf”, agora empinou e faz “tum-tum”. Ao contrário do que muitos imaginam, o problema não é o “pluf”, mas justamente o “tum”.

“Pluf” é algo natural, acompanha a anatomia do corpo, apresenta funções fisiológicas importantes para serem como tal. Mas, até nisso o homem mete o bedelho e acaba trocando os pés pelas mãos. Silicone, injeção disso, pílulas daquilo e o resultado é uma mulher “made in China”, com tudo empinado, apontando para céu, dando graças pela medicina estética moderna. Mas, será que seio de pedra, barriga de tábua e bumbum de melão são coisas tão legais assim?

Quando ela se aproxima, lá do fundo vem a vontade de perguntar: “Quebra? Amassa? Dá choque?”. Aos mais audaciosos ainda falta coragem para pedir “Pode tocar?”. Tem gente que ainda tem dúvida e fica remoendo: “Será que aquele é de verdade?”. Basta afiar um pouco o olhar e os ouvidos. Não tem segredo! No fundo, dá para notar quando a forma é moldada numa maca e, é claro, quando o som sugere tambores chineses: “tum-tum”.

Olhando hoje, de dentro da onda, parece até que o “tum-tum” vai durar uma era. Até que, na próxima estação, ninguém pasma quando o “tum” deixa a passarela. Se o barato da vida é que cada um é diferente, por que será que todo mundo quer ser igual, quer ser “tum-tum”? E será que fazer parte do todo mundo não está ficando chato?

Uma hora dessas, a coisa explode. Alerta, mulher made in China! Quando você menos esperar o seu tum-tum vai fazer bum!

quarta-feira, 11 de março de 2009

Ode no Centenário do Poeta Gauche

Carlos, quero lhe falar.
Você despiu a vida,
vasculhou os arquivos do coração
e semeou versos em meus pensamentos.
Minha cabeça está em flor, Carlos!

Você, meu poeta, que é gauche,
que não segura formas,
que tem sete faces,
que trava com as palavras uma luta vã.

Você que é o sobrevivente,
que tem o sentimento do mundo,
que atira limão n’água,
que gasta tempo pensando um verso.

Você que é Drummond de Andrade,
que até anjo torto já viu...
Stop! Não porque a vida parou
mas porque o Brasil parou para o ler.

Deixe-me, Carlos, embeber suas palavras
e recitar seu amor pela poesia.

Quero lhe falar
para que me permita caminhar por Itabira
pelas ruas desse vasto mundo
(como o mundo é grande!)
e poder enxergar em cada ser uma parte sua.

Devo arrancar, meu poeta, a pedra do meio do caminho
para vislumbrar por de trás de suas retinas fatigadas
a alma de um sonhador.

Um sonhador que imprimiu sua história
nos mais belos versos livres.

Você entrou para a história, Carlos.
Seus ombros definitivamente suportaram o mundo.
Mas você também se equivocou...

A festa não acabou, amigo
nem a luz se apagou...

Porque a sua estrela ilumina essas linhas
E porque você é uma festa em forma de poesia!

Vejo e somente agora tomo consciência de que
...já falei,
...já poetizei,
...admirei e endoideci.

Chamei-o Carlos, poeta, gauche, amigo.
Devo, no entanto, perguntar-lhe:

E agora, Carlos?
Posso chamá-lo José?

O silêncio azul

Deitado sob a manta gasta
Pelo tempo de bilhões de anos
Pela mão pesada de um algoz ruidoso

Cai-lhe uma lágrima sombria
Que escorre pelo canto
E corrói o caminho feito ácido sulfúrico

A tosse é igualmente sombria
Faz brilhar o ar que nem poeira de asfalto
Uma asma rouca e ressequida

O sangue azul não é azul como outrora
Cintila denso por entre partículas mortas
Do meio dele brotam espumas
E odores fétidos

Os cabelos eram fartos e encaracolados
Verdes e dourados
Tosados pela mão pesada
Não passam agora de tocos podres
Em couro infértil

O algoz não baixa guarda
Seu chicote é cada vez mais veloz
Sua voz, mais estridente
Seu olhar, mais ambicioso

Na manta gasta, o mundo se esquiva
Prepara-se para morrer
E levar o algoz junto dele
Assim sua vingança será

Um buraco negro
Uma língua de fogo apocalíptica
Talvez uma explosão de poeira tóxica

Uma fúria silenciosa que calará a humanidade ruidosa

sábado, 7 de março de 2009

O sistema ruiu

Bicho manso nunca foi. Começou selvagem e vai morrer com as fracas unhas encravadas na presa desfalecida. Não é de se render. Vai morrer bufando, com bafo de dólar, saindo de suas entranhas. O capitalismo, esta esfinge de vontades, arrastou para o calabouço da pobreza os que não podem consumir grifes. Transformou o mercado em um monstro sagrado bipolar, ora eufórico, ora irritadíssimo. Isolou do mundo quem não está ao alcance de um clique.

Míope, a sociedade não é mais capaz de planejar seu próprio futuro. Caótica, busca recuperar princípios pulverizados. Asmática, perdeu o fôlego em meio a florestas queimadas e rios poluídos.

A onda capitalista veio colorida e inebriante. As pessoas eufóricas passaram a vestir, exibir e comer marcas, apenas marcas. Suas empresas ganharam conotação humana. Afinal, dizemos que elas são entusiastas, divertidas, sofisticadas ou espontâneas, como se corresse sangue por entre suas tubulações. Durante o último século, essa foi a visão de mundo pregada como verdade profética.

Alimentando essa lógica, a sociedade cuspiu sua ética e passou a engolir futilidades. Supervalorizou o bolso, deu corda para o monstro bipolar que não mais suportou a barra e vomitou tudo. O sistema rachou. Parecia uma fortaleza, revelou-se uma muralha de algodão. No momento, a sociedade tenta domar a fera que, dopada, não mais responde por si.

Mas, nos tempos áureos, ela trouxe muita glória aos consumidores. Riu muito, ignorando os enclausurados. Riu com as vendas e os gastos. Riu tanto... até ruir.

Poeira ortogracósmica

O novo acordo ortográfico da língua portuguesa veio a calhar. Caiu como uma luva em tempos de crise. Já que ninguém sabe direito o que anda acontecendo com a economia, o dólar, as grandes companhias, os salários e os empregos, que venham os ditongos abertos, as paroxítonas não acentuadas, os prefixos, os hífens, o choro saudoso do trema e o K-Y-W com seu hálito estrangeiro.

Sem ter mais o que inventar, os doutores da gramática resolveram descomplicar o complicado que já é complexo por natureza. Compliquei? Agora não importa mais. Se muitos mortais que falam português tiveram a vida toda, mas não conseguiram ainda acreditar que “se não” é diferente de “senão” e “embora” é uma palavra só, como dizer aos pobres diabos que “ideia” e “leem” agora estão órfãos de agudo e circunflexo? Como convencer que o “bate” e a “boca” se livraram da ponte que os separava, viraram “bateboca” e vão viver coladinhos para o resto da vida?

Além de pirraça e sabatina, só resta dizer “amém”. No entanto, editores, escritores, jornalistas, professores, advogados e outros profissionais, que têm a escrita por vocação, precisam ir além ou sua vocação vai virar poeira ortogracósmica. Assim, são milhões de dicionários atualíssimos encomendados, milhares de gramáticas reaprendidas e zilhões de preces rogadas para que a Microsoft lance rápido a versão corrigida do Word.

A intenção foi boa. Afinal, idioma também respira. É como o Imposto de Renda: virou leão e respira. O Cruzeiro Esporte Clube é raposa e respira. Está certo que a cobra fuma, mas a pomba da paz respira. Não será surpresa se, qualquer dia desses, a língua portuguesa bater à nossa porta e se apresentar, complexa como sempre e renovadamente a mesma como nunca, dizendo: “Muito prazer. Pode me chamar de ‘Ser Humano’, se preferir”. Bichinho complicado esse.